sábado, 26 de maio de 2012

(um outro olhar sobre o conto "Talpa" do escritor mexicano Juan Rulfo) Foto e texto: Ricardo Onofrio


Comecei a morrer já faz algum tempo. Era como se eu visse uma longa fila em minha frente e só agora conseguisse chegar ao seu fim.

Se você esta lendo isso é por que nesse momento já alcancei o que desejava, fechei os olhos, alcancei o alivio para mim, e principalmente, para eles. Vou contar quem são eles, meu irmão e a mulher que algum dia fez valer a pena aguentar à vida que me foi ofertada.

Desde sempre vivi um “não viver”, participei do cenário em que estava inserido como um ser ruminante, passivamente esperando a sorte que nunca viria.

Decidi não expressar revolta, engoli cada nascer e morrer do sol que nos queimava como a única opção, e admito meu caro, isso nunca me incomodou, pois todo o homem que conhece apenas uma verdade não se frustra, pois nunca vai poder comparar com algo melhor, ou simplesmente, diferente.

Essa é a salvação e beleza da ignorância, ter só um ponto de vista e engolir o que nos é oferecido como uma dádiva e como se não bastasse, antes de dormir, agradecer a um Deus filho da puta que nos abandonou desde o ventre de nossas mães, avós e todas que as antecederam.

Parideiras de natimortos teimosos que insistiram em respirar e crescer.

Foi quando no meio de minha seca vida, minhas pálpebras desgrudaram em um dia de verão eterno e pela primeira vez a vi, linda, suja e triste, parada em minha porta.
Disse que veio pedir água a mando de seu pai, murmurou aquelas palavras com uma mistura de vergonha e curiosidade.

Naquele exato instante em que acabou de falar eu decidi, sem cortejo, sem discussão que ela seria minha.

Passadas poucas semanas, aquela estranha dividia comigo as noites infinitas, noites que grudavam na pele sem deixar ninguém dormir. Sem me importar se ela gostava ou não, a trouxe para junto de mim. Queria dividir o inferno com alguém, e finalmente achara a presa certa para isso.

Com o passar do tempo ela se acostumou à prisão que a ofereci. A coitada não tinha outra opção e ficou satisfeita ao perceber que o deixar de sonhar virava rotina, que virar um objeto nulo, mudo e sem planos seria sua única chance.

Posso afirmar que tudo isso acabou virando uma relação estéril, sem concessões de nenhuma das partes, doentia mesmo. Mas agora entendo que quando dois seres tem um futuro oco, qualquer preenchimento, mesmo que cause ojeriza, te sustenta, e te faz acordar todos os dias achando que algo mudou.

Comecei a saborear o que outros chamam de felicidade,cumplicidade, e por isso forjamos planos calcados no nada, idéias com um começo miserável e um fim trágico.

Peço ao amigo que ainda não me julgue, você não entende o que estou falando, e com certeza nunca teve de sorver migalhas achando que era pão novo.

Tudo eu suportei, o que mais machucasse eu sentiria como um afago, pois agora tinha com quem dividir essa desesperança. E dois desesperados, aguentam melhor quando apanham juntos, o amargo diluído fica mais tragável.

Mas sem esperar, quando achava que as coisas iriam melhorar, nossa rotina foi interrompida por ele, e naquele momento eu soube que meu caminho iria em direção ao fim. Meu irmão me encontrou depois de anos de ausência, e não por saudade, mas me procurou como um cão faminto implora a seu dono por uma sobrevida.

Carne de minha carne o acolhi debaixo do mesmo teto que antes era só meu, dela e de nossa desonra compartilhada. Acolhi meu irmão sabendo que trazia o veneno para infectar o que já era podre e quieto esperei o que o destino já me avisava que aconteceria.

Sonhava todas as noites, gritava mudo, prevendo o que estava próximo, e admito que nunca tive vontade de intervir, não, a culpa era deles e o papel de vitima me servia como uma luva.

Apesar de todos os avisos, quando acordei aquela madrugada me deparei com o primeiro sinal de minha morte. Meu irmão penetrava como um vulto à carne da mulher que escolhi para viver comigo essa merda de vida.

Olhei com cuidado e perfurei meus olhos com a cena.

Nunca souberam que os vi, e de forma sórdida, mesclei momentos de ira com outros de pena dos dois traidores.

Voltei a ser o invisível naquela casa, escolhi esperar até quando eles iriam permanecer assim. Não esperava uma retratação e sinceramente nunca quis que isso acontecesse.

A saída foi o isolamento, e então me convencer, de que minha melhor vingança seria o silêncio. Com força, podemos viver cegos por muito tempo, conviver com aquilo que mais machuca.

Mas em pouco tempo minha carne começou a vomitar o que só eu sabia e escondia. Estigmas, cicatrizes apareceram e cada um deles eram como desenhos fora do meu corpo mostrando aquilo que antes só vivia dentro dele.

As primeiras chagas explodiram até que todos notassem, depois todo o resto apodreceu, e eu olhava para eles de longe imaginado o que estaria acontecendo comigo, algo que nunca respondi.

Escrevo estas palavras nas horas que antecedem minha última caminhada em direção a minha santa e vou continuar a escrever durante todo o caminho.

Os dois algozes são meus guias, e a cada passo grito de dor e durante o infinito seco que nos levará até lá ficarei quieto, deixando para eles o pior dos suplícios, a dúvida, o remorso. Mas nesse momento o que sentem é alivio por saberem que irão me enterrar e finalmente terão o caminho livre para foder sem ter o moribundo por perto.


Começamos a caminhada em direção a santa, nós e milhares de outros corpos caminhando cegos em direção a promessa de um milagre. Só eu sei em segredo que estou indo até lá para fechar os olhos, ou para que eles os fechem por mim. Mas antes disso os farei durante dias carregar meu corpo sabendo que não estão ajudando o irmão, o amante, mas sim buscando com pressa o alivio de enterrar bem fundo algo que não pesará mais em suas costas e em suas cabeças.

Eles querem meu fim, eles querem um começo para os dois.

Tentei até agora não falar em vingança, mas entendo que ela está perto. Essa carta está sendo vomitada para que depois do alivio de me entocarem na pedra leiam a verdade. Não esperam por esses rabiscos, palavras que irão assombrar o resto de suas vidas por saber que o irmão e marido morreu a conta gotas, sem reclamar ter sabido a barbárie que cometeram. Ao lerem minhas últimas palavras, mesmo eu já estando seco em uma vala funda no deserto, deixarei guardada para eles a pior das vinganças, do tipo que não se expressa com violência ou na hora errada.

E eu enterrado, desaparecendo no deserto esboçarei um sorriso eterno por estar em paz, enquanto deixo para eles o inferno dessa terra seca.

Agora sinto pena dos infelizes e espero que a cruz que irão carregar pese mais do que minha dor machuque mais do que minhas chagas e por fim espero que tirem sua vidas para que em algum lugar me encontrem para pedir perdão, mesmo que recebam em troca apenas um não e um sorriso.

Polaroids (Foto e texto: Ricardo Onofrio)


Acordou perdido no escuro e com apenas uma fração de memória não conseguiu montar o trajeto que o levou ate ali.

Ainda sem abrir os olhos, cerrados pelo torpor e seqüelas da noite anterior apoiou-se nos outros sentidos já despertos.

O som que ouviu era de água.

O cheiro denunciava um erro prestes a ser descoberto.

O tato comprovava o terror de estar no local errado, úmido, imundo e longe do ideal e segurança de um lar onde todos o esperavam.

Descolou as pálpebras com desespero.

O que era turvo começava a clarear e agora era tarde para voltar.

O que viu foi o deserto da manhã, deitado sozinho em uma praia, sem nome, amigos e nem uma gota de memória.

Sofregamente levantou vestindo trapos que não eram seus.

Olhou em volta e não havia gente, casas, vozes, apenas ele, o mar e a dúvida.

Caído ao seu lado um envelope molhado, dentro dele Polaroids de rostos que um dia foram familiares, todos desolados, no canto da foto a data era a da noite que passara.

Havia raiva e decepção no olhar de cada um daqueles fantasmas estampados no papel.

Entendeu que fora abandonado ali sozinho e o esquecimento só ajudava a piorar tudo.

Deitou novamente, fechou os olhos com força e esperou acordar longe daquele pesadelo.

Um pedaço de pano cobria algo deitado na praia, tocou-o com a ponta dos dedos e o que havia embaixo era gélido, macio e inerte.

A mais bela mulher da foto jazia ao seu lado.

Levantou atordoado e na areia que se estendia até encontrar o morro, lado a lado, todas aquelas fotos saíram do papel e agora posavam estáticos como oferendas deixadas na areia esperando que o mar as levasse.

Insomnia (Texto: Ricardo Onofrio)


No breu olhando o teto, regurgito ar, me perco na cegueira do olho e me esvazio em vozes e cenas mal dirigidas pelo relógio que não para.

Toda a cidade morre, sonâmbulos inertes vagando nos sonhos mas de corpos parados, a carcaça recuperada para continuarem dormindo acordados achando que o Sol e o novo dia será diferente, melhor.

Contento-me com a pena rasgando o papel e o silencio urrando palavras como placebo para meus problemas.

Mas o branco da folha nunca acaba e o preto do olhar fechado não acalma.

Areia infinita escorrendo entre os cílios, sou ampulheta que a cada vez acabada é virada de lado para que a ladainha reinicie.

Ouço uma canção de não ninar, vejo o escuro que não cega, e permaneço na horizontal velando a mim mesmo.

Não! (Texto: Ricardo Onofrio - Foto: Juliana Wolkmer)


Foi a primeira palavra dita por ele, um som angustiado, desabafo de algo reprimido, esmagado.

Os que o rodeavam, antes admirados, agora estavam atônitos. Não esperavam por aquilo e não entenderam sua frustração ao ouvir o que não queriam.

Nunca mais emitiu outro som.

Com o passar do tempo, poucos ficaram ao seu lado.

Aquela primeira palavra determinou tudo o que veio depois.

A passividade na forma do exagero, a ausência controlada, a indignação sem precedentes.

Escolheu viver isolado, tinha ojeriza ao contato, seu mundo começava e terminava em si mesmo.

Nunca mais emitiu outro som.

Satisfeito ou não, assim viveu, ano após ano, vagando, vegetando.Sem fazer diferença, sem buscar prazer, sem riscos, erros ou acertos.

Ao fim da vida, os poucos que de longe presenciaram sua passagem pelos anos já não esperavam uma mudança.

Na hora da morte, ele disse SIM!

Sorriu, fechou os olhos e foi.